“Casamento às Cegas” e o Amor Romântico

Ana Luiza Cardozo
10 min readDec 13, 2020

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Realidade e ficção se misturam no reality lançado pela Netflix, que também reforça padrões estéticos e idealização amorosa.

Por Ana Beatriz Rodrigues Garcia, Ana Luiza Vaz Cardozo, Camilly Rodrigues Sodré, Mariah Boratto Peixoto dos Santos e Suzana Correa Petropouleas

Há 70 anos, em setembro de 1950, ocorria no Brasil a primeira transmissão televisiva, feita para apenas 200 aparelhos. Hoje, com mais de 100 milhões de aparelhos conectados, é difícil imaginar uma sala de estar brasileira sem a TV como objeto central. De lá para cá, muita coisa mudou. As programações exibidas por canais abertos e fechados vêm perdendo suas audiências para serviços de streaming — a Netflix, que conta com mais de 160 milhões de assinantes, é hoje quem dita os #trendingtopics. Em vez de discutirmos a novela das nove, trocamos indicações de séries e comentamos sobre os últimos reality shows lançados por uma plataforma de alcance mundial.

Uma das últimas produções que “deu o que falar” foi o reality show “Casamento às Cegas” (2020), no qual homens e mulheres buscam seus “pares ideais” de um modo bastante incomum. Os participantes deveriam realizar pedidos de casamentos baseando-se apenas em conversas realizadas em cabines isoladas, sem ao menos verem seus pretendentes. O reality traz a discussão de quão relevantes são os aspectos físicos e os componentes da “vida real” em um relacionamento, bem como apresenta quais os critérios de seleção dos participantes quando a estética do parceiro não está em jogo. O que aprendemos sobre os ideais atuais de amor romântico e casamento ao assistirmos tal programa? Há algo de problemático, emblemático ou questionável acerca destes ideais nesta produção?

Trailer de Casamento às Cegas (Netflix, 2020)

Para respondermos tais questões, utilizaremos dois principais autores. Umberto Eco, em seu artigo Tevê: a transparência perdida (1984), nos ajudará a refletir criticamente sobre como o conteúdo televisivo é produzido. Apesar de nosso objeto de análise ser transmitido pela plataforma online Netflix, é possível traçar paralelos com a interpretação aventada por Eco para a televisão, especialmente se considerarmos as plataformas de streaming como parte constituinte e fundamental da produção audiovisual hoje, que concorrem com (e também complementam) o conteúdo televisivo. Analisaremos também os discursos apresentados pela edição e pelos participantes utilizando-nos da Análise de Discurso Crítica (ADC), corrente anglo-saxã cujo principal autor é Norman Fairclough e cuja metodologia servirá de base para analisarmos e refletirmos criticamente acerca do conteúdo de Casamento às Cegas.

O referencial teórico de Eco estabelece uma tipologia que divide programas televisivos entre os de informação e os de ficção. Os primeiros seriam aqueles que tratam de eventos que acontecem independentemente da existência da televisão. Os segundos, por sua vez, são produzidos por ela. No entanto, o autor aponta que diversas problemáticas surgem quando os formatos desses programas passam a se confundir e há um apagamento da fronteira entre o que existe de fato e o que é ficcional.

Casamento às Cegas, assim como outros reality shows, tenta eliminar a fronteira entre o real e a ficção. (Netflix, 2020)

Um dos exemplos apresentados pelo autor em sua análise histórica do desenvolvimento da televisão é o caso dos programas de perguntas e respostas nos quais, embora haja uma verdade objetiva na resposta considerada correta, o próprio apresentador não tem obrigação de dizer sempre a verdade. Eco também aponta programas informacionais em que, apesar de o fato reportado ser real, sua proporção e condução são afetadas pela existência da televisão e da transmissão do evento. Ele enuncia ainda o fato de que a televisão se tornou crescentemente autorreferente, deixando de ser uma “janela para o globo” e tornando-se uma janela para si mesma, para a realidade que fabrica e para o provinciano e o local, estreitando as perspectivas dos espectadores e os potenciais de representação da própria televisão.

Na Análise Crítica do Discurso, por sua vez, os discursos são compreendidos como representações de aspectos e perspectivas, frutos dos contextos (ou práticas sociais) no qual foram produzidas. O conceito de prática social, em si, é composto pelo discurso, a atividade material, as relações sociais e os fenômenos mentais, que se entrecruzam e articulam — são os “momentos” da prática social, que se combinam em relações mais ou menos permanentes.

A ADC compreende que não há prática de discurso em si, mas ligada a uma prática social. Um discurso pode ser bem compreendido se olharmos para elementos externos com que dialoga, e a estrutura social em que se insere. Assim, o discurso é momento de uma prática social, com pontos de vista que refletem estruturas culturais, políticas e econômicas. A ADC almeja não apenas dissecar problemas existentes nos discursos analisados, mas propor alternativas e horizontes para superá-los. A crítica explanatória proposta por Fairclough não limita a análise da prática social ao texto, dialogando com análises de outras áreas, como a sociologia e a etnografia.

A metodologia da ADC traz, assim, três enfoques para análise (veja tabela):

  • O contexto (prática social) da comunicação (ideologias e hegemonias, dadas as orientações políticas, culturais e econômicas);
  • O processo (prática discursiva) (como foi feita a comunicação: produção, distribuição, consumo, intertextualidade)
  • E a forma (texto) (o que foi comunicado, quais vocabulários, gramática, estrutura e coesão)
Tabela 1 — Metodologia da Análise de Discurso Crítica

É necessário, portanto, conectar a descrição formal do conteúdo com seu meio e processo de produção. É este o método e abordagem que empregaremos a seguir para analisar Casamento às Cegas à luz das teorias citadas.

A produção do reality e seu produto final espelham diversas questões trazidas por Eco (1984). Assim como o autor aponta que aconteceu na história da TV, no programa a dualidade tipológica informação X ficção/fantasia também mescla-se e confunde o espectador, comprometendo sua capacidade de diferenciar entre realidade e ficção. Eco recorda que, nos primórdios das atividades televisivas, quem falava olhando para a câmera representava a si mesmo; quem performava em frente a ela sem olhá-la diretamente, por sua vez, representava um outro fictício numa ação que, supostamente, aconteceria mesmo se a câmera não estivesse ali.

A princípio, o reality vale-se dessa generalização: ora os participantes abrem o coração em depoimentos bastante pessoais em que se dirigem diretamente para as câmeras, ora são mostrados num jantar, festa e até quarto de hotel interagindo com seus pares, como se nenhuma câmera estivesse ali. Nestes momentos, cria-se uma “ilusão de realidade” (ECO, 1984, p.3), na qual a “televisão quer desaparecer como sujeito do ato de enunciação” (IDEM).

A escolha pelo formato de reality show não é à toa: grande parte do apelo do programa é justamente fazer com que o espectador sinta-se parte de um experimento sobretudo real, que provará de fato (dizem os apresentadores na atração, repetidamente) se o amor é cego ou não. Quaisquer marcas de ficcionalidade (como cenas de bastidores que mostrem a equipe de filmagem) são deliberadamente evitadas e o discurso é pautado no reforço constante da veracidade do empreendimento. Este reflete-se, por exemplo, nas diversas cenas em que os participantes verbalizam hesitação sobre escolher a pessoa com quem “passarão o resto de suas vidas”.

Momento decisivo para os participantes foi planejado para para ser televisivo. (Netflix, 2020)

No entanto, a produção deste produto audiovisual está inserida num contexto — ou prática social e discursiva intertextual, como proporia Fairclough — em que reality shows já não são novidade e dúvidas acerca da manipulação ou não dos fatos neste tipo de produção povoam o imaginário social e a memória coletiva sobre experiências similares recentes. É o que deixa o espectador perguntando-se a mesma questão que Eco levanta a respeito dos programas de perguntas e respostas: “Será que esse programa diz a verdade ou encena a ficção?” (ECO, 1984, p.4).

A própria internet hoje age socialmente como uma força mediadora e reveladora entre a TV e o público, como num jogo de máscaras que tenta responder à pergunta acima. Numa rápida busca, ela revela aos fãs de Casamento às Cegas que diversos momentos em tese retratados como espontâneos eram, na verdade, planejados e orquestrados. A equipe de produção, por exemplo, exigia que os participantes guardassem suas decisões (de sim ou não) para o altar. Ou seja, por mais que um participante já tivesse decidido não seguir com o casamento, o casal se mantinha junto em frente às câmeras até o dia da cerimônia, para que o fatídico ‘não’ fosse dado também em frente às câmeras — com todo o drama envolvido na decisão de deixar o parceiro no altar devidamente captado por elas.

A análise dos discursos dos participantes ao longo do programa é também bastante reveladora acerca das práticas sociais e discursivas em que estão inseridos e que se refletem na narrativa de suas próprias histórias e motivações, como pressupõe Fairclough.

O programa reflete sobretudo a idealização do amor romântico monogâmico que permeia as relações afetivas sob a hegemonia do capitalismo neoliberal e que advém de uma concepção social segundo a qual o indivíduo só será feliz se tiver um parceiro romântico ao seu lado. Essa orientação social é ainda mais marcante na socialização e vivência afetiva das mulheres e pode ser observada, por exemplo, no momento em que a participante Lauren diz que sua mãe “ligava todos os dias” para lembrá-la de que ela deveria casar-se, pois “seus óvulos estavam murchando”.

O programa reforça a idealização do amor e o casamento surge como uma chave para a felicidade. (Netflix, 2020)

O reality também é permeado pela noção implícita da heteronormatividade como regra, uma vez que todos os casais são héteros. Essa orientação hegemônica, que ainda ordena as relações sociais hoje, pode ser vista principalmente no fio narrativo envolvendo o casal Diamond e Carlton. Ao descobrir que seu parceiro era bissexual, Diamond reage negativamente, culminando em uma briga entre os dois e o fim do relacionamento. O objetivo do programa mostra-se, portanto, formar casais considerados perfeitos dentro dos padrões sociais normativos impostos, não se admitindo nenhum “ponto fora da curva” e, implicitamente, mostrando à audiência que pessoas que fogem desses padrões não devem esperar o “final feliz” supostamente destinado aos participantes selecionados.

Nesse sentido, nota-se também que, apesar do objetivo do programa ser provar que o amor é cego, todos os participantes estavam rigorosamente dentro do padrão normativo de beleza social eurocêntrica — todos homens fortes e altos e as mulheres, magras e de cabelo liso. Repara-se que, mesmo com o discurso continuamente reiterado de que a aparência não importava e a conexão emocional sim, alguns casais tiveram dificuldade em efetivar aquilo que diziam — como o caso de Jéssica e Mark, em que a participante desejava um parceiro mais alto, aspiração que espelhava mais uma vez um dos ideais sociais normativos que permeiam o discurso do programa.

Não há, por fim, representação da variedade de corpos e estéticas existentes no mundo real em Casamento às Cegas, o que parece escapar do discurso de todos os participantes captados pelas câmeras. Todos se perguntam repetidamente ao longo da jornada se o amor é cego, mas seu discurso não parece considerar que a cegueira proposta é seletiva e restrita a corpos jovens, magros, em sua maioria brancos, heterossexuais e considerados desejáveis pela norma padrão atual.

Diante dessa miríade de valores identificados ao longo do discurso apresentado pelo reality, é perceptível que este visa incentivar a manutenção e perpetuação de uma prática e organização política, social, psicológica e inclusive econômica que tem, entre seus fundamentos, o amor romântico, a monogamia, a heteronormatividade e o casamento.

A análise crítica da produção televisiva proposta por Eco (1984) nos alerta que é necessário, portanto, estar atento. Como podemos perceber, a hipótese levantada pelo programa, de que o amor pode ser cego, não foi de fato testada. Ademais, como vimos durante a análise, a “realidade” ali apresentada é, não ao acaso, fruto de um conjunto de edições.

Por fim, de acordo com a proposta de Chouliaraki e Fairclough (1999), ao nos deparamos com tais conteúdos e seus discursos, é adequado realizarmos uma análise crítica, como propusemos aqui, para refletirmos sobre caminhos para as problemáticas apresentadas. Estas suscitam questionamentos relevantes, tais como: queremos continuar construindo uma sociedade fundada sob a premissa de que apenas atingiremos a plenitude ao, enfim, encontrarmos um parceiro romântico ideal? Ou cabe questionarmos o que há realmente por trás da manutenção desses desejos?

REFERÊNCIAS

ECO, Umberto. “Tevê: a transparência perdida”. In: Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

CHOULIARAKI, Lilie; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity — rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.

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Ana Luiza Cardozo

Internacionalista se aventurando pelo mundo do Jornalismo. Gosta mesmo é de contar e colecionar histórias!