Crítica: Arábia, direção João Dumans e Affonso Uchôa | Blog e-Urbanidade

Ana Luiza Cardozo
3 min readJul 28, 2020

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Arábia — Foto: Divulgação Katásia Filmes / Vasto Mundo

O premiado filme dos mineiros João Dumans e Affonso Uchôa é de 2017, mas os questionamentos acerca da precarização do trabalho e das condições sociais de um Brasil expressivo, porém oprimido, tornam-se ainda mais urgentes agora.

Em tempos de flexibilização de direitos trabalhistas e de um mercado ainda mais explorador, que usa a crise como sustentação para seus desmandos, trazer Arábia de volta ao público é, no mínimo, oportuno. Toda uma classe trabalhadora é representada em 96 minutos de longa.

Conhecemos a história de Cristiano ( Aristides de Sousa), um operário de uma velha fábrica de alumínio em Ouro Preto. Ele sofre um acidente de trabalho e é socorrido pela enfermeira Márcia ( Gláucia Vandeveld), que pede para o sobrinho ir a casa do homem, pegar roupas e documentos. O jovem André ( Murilo Caliari), atende ao pedido da tia e, na tarefa, encontra um caderno com as memórias de Cristiano.

Logo no início de Arábia, há uma troca de protagonistas, de André para Cristiano. Ambos distintos, distantes, unidos apenas pela solidão. Começa aí a narrativa em primeira pessoa, dividindo-se entre ficção e realidade, com elementos de road movie. Um proletário escritor que conta a vida no diário. A locução em off é um recurso a ser usado com cautela, mas que, neste caso, é o fundamento da construção de todo o filme.

Arábia — Foto: Divulgação Katásia Filmes / Vasto Mundo

Simultaneamente à existência laboral, bruta, lacônica, há a voz literária, poética em sua simplicidade. Não há exageros. Apesar da aproximação com o ficcional, ainda é minimamente verossímil para o caderno de um trabalhador. Cristiano aqui tem a oportunidade de expressar as emoções omitidas pelo trabalho estritamente físico.

O operário vaga de serviço em serviço, buscando oportunidade. Pega a estrada e faz de tudo, colhe laranjas numa fazenda, passa por uma pedreira, arranja um bico num puteiro, faz as vezes de ajudante de carga — rendendo um dos diálogos mais emblemáticos do filme, sobre sacos bons e ruins de carregar- é mais feliz numa fábrica de tecelagem…

Nessa jornada, lá estamos, capturados pelas andanças de Cristiano. Ao fundo, uma ótima trilha sonora, que vai do folk norte-americano, passa por Cowboy fora da lei, de Raul Seixas, num simpático violão entre amigos, até Três Apitos, de Noel Rosa e interpretação de Maria Bethânia, que traduz de forma terna e emocionante o amor de Cristiano por Ana ( Renata Cabral).

Além da aproximação causada pelo ponto de vista do narrador, toda a singeleza da produção é atraente. As belas paisagens de Minas Gerais são aproveitadas e há naturalidade em todas as escolhas visuais. Em meio ao verde das serras mineiras, o monstrengo fabril que cospe fuligem pela cidade, uma lembrança pungente da hostilidade da labuta.

Se o trabalho dignifica o Homem, que engrandecimento é este que estremece as relações sociais? Arábia cita brevemente o movimento sindicalista no país, mas é pela tomada de consciência do protagonista que as reflexões sobre a coisificação do operário e do significado dos espaços de trabalho vêm à tona.

A trajetória de Cristiano, além de representar a história de milhões de brasileiros, pode ser lida como uma metáfora para o desenvolvimento econômico no Brasil na última década. Da euforia ao colapso. Assim como Cristiano escolhe a próxima rota, resta saber qual será nosso próximo desvio. O que faremos com essa, como ele mesmo diz, “gente do braço forte com vontade de acordar cedo”?

Trailer:

Onde Assistir:

Arábia — Mostra Brasil Cinema Agora! — Disponível até 01/08

Originally published at https://www.eurbanidade.blog.br on July 28, 2020.

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Ana Luiza Cardozo

Internacionalista se aventurando pelo mundo do Jornalismo. Gosta mesmo é de contar e colecionar histórias!